No cenário global contemporâneo, o conceito de economia nacional isolada tornou-se uma ficção. As nações não competem apenas por território ou recursos naturais, mas pela capacidade de integrar-se a ecossistemas produtivos e inovativos. Essa dinâmica é especialmente evidente na área da saúde, onde a complexidade do desenvolvimento tecnológico exige interdependência entre países, empresas e instituições de pesquisa. A inovação, quando tratada como um vetor estratégico, depende não apenas de incentivos internos, mas de redes colaborativas globais.
A interconexão entre nações na produção de bens e serviços sofisticados já foi amplamente demonstrada em setores como o de semicondutores e biotecnologia. Nenhum país, por mais desenvolvido que seja, consegue produzir sozinho os insumos e conhecimentos necessários para competir na fronteira tecnológica. O exemplo do iPhone, citado por economistas como Eric Beinhocker, ilustra como um único produto pode depender de cadeias produtivas espalhadas por dezenas de países. O iPhone é projetado pela Apple nos Estados Unidos, mas seus componentes são fabricados e montados em várias partes do mundo. O processador pode ser produzido em Taiwan, a tela OLED pode vir da Coreia do Sul, a bateria da China, e os sensores do Japão. Posteriormente, a montagem final acontece majoritariamente na China.
Esse nível de interdependência global demonstra como a produção moderna exige um ecossistema colaborativo que atravessa fronteiras nacionais. Essa lógica se replica na saúde, onde a pesquisa, o desenvolvimento e a fabricação de medicamentos, vacinas e dispositivos médicos são distribuídos globalmente.
A visão de Paul Romer, laureado com o Prêmio Nobel de Economia em 2018 por suas contribuições à teoria do crescimento endógeno, é crucial para entender essa dinâmica. Romer argumenta que o crescimento econômico sustentável depende da acumulação de conhecimento e da inovação tecnológica, fatores que são amplificados quando integrados a redes globais de colaboração. Seu trabalho destaca que políticas públicas eficazes devem estimular o compartilhamento de conhecimento e a formação de parcerias internacionais para impulsionar a inovação.
Durante a pandemia de COVID-19, essa realidade ficou evidente. O desenvolvimento acelerado das vacinas de mRNA só foi possível graças à colaboração entre universidades, startups, grandes farmacêuticas e governos ao redor do mundo. Um país que tentasse desenvolver uma vacina inteiramente dentro de suas fronteiras dificilmente teria conseguido a velocidade e a eficiência necessárias. Isso revela uma verdade fundamental: a prosperidade de uma nação depende de sua inserção estratégica em ecossistemas de inovação.
O Setor da Saúde como Pilar Estratégico
A saúde não é apenas uma questão de bem-estar social, mas um fator crítico de competitividade nacional. A existência de um ecossistema robusto de pesquisa biomédica e inovação farmacêutica fortalece um país em múltiplas frentes: impulsiona a economia, atrai investimentos e aumenta a resiliência nacional em crises sanitárias. No entanto, esse ecossistema não pode ser construído de forma isolada.
Os Estados Unidos, por exemplo, são líderes em inovação na área da saúde não apenas pelo volume de investimentos públicos e privados, mas porque fazem parte de uma ampla rede de colaboração global. Laboratórios europeus, startups israelenses, cientistas asiáticos e dados clínicos coletados ao redor do mundo alimentam sua capacidade de inovação. Essa estratégia difere da abordagem protecionista que tenta nacionalizar toda a cadeia produtiva. O sucesso reside não na tentativa de produzir tudo internamente, mas na capacidade de coordenar fluxos de conhecimento, tecnologia e capital humano.
O conceito de clusters industriais, conforme discutido por Michael Porter em sua teoria das vantagens competitivas das nações, reforça essa ideia. Clusters são redes de empresas, instituições de pesquisa e infraestrutura especializada que se organizam em torno de uma área específica do conhecimento ou da produção industrial, impulsionando a inovação e a competitividade.
Embora Porter tenha enfatizado os clusters industriais como motores de crescimento econômico, sua lógica pode ser expandida para os ecossistemas de inovação, que abrangem não apenas empresas e instituições de pesquisa, mas também políticas públicas, financiamento, parcerias internacionais e o compartilhamento de conhecimento global.
Enquanto os clusters operam em um nível mais regionalizado e setorial, os ecossistemas são estruturas mais abrangentes, capazes de integrar diferentes atores e fomentar um ambiente propício à inovação de maneira mais ampla e dinâmica. Porter argumenta que a competitividade de um país depende da existência de clusters — concentrações de empresas, instituições de pesquisa e infraestrutura especializadas em determinados setores — que impulsionam a inovação e o desenvolvimento econômico.
Essa lógica pode ser expandida para os ecossistemas de inovação, que operam em uma escala ainda mais ampla, conectando não apenas empresas e instituições, mas também políticas públicas, financiamento, colaboração internacional e fluxos de conhecimento global. No setor de saúde, esses clusters se tornam ainda mais essenciais, dado o alto custo e a complexidade da pesquisa biomédica.
Os clusters industriais, conforme discutidos por Porter, são essenciais para impulsionar a competitividade e a inovação, pois concentram conhecimento e recursos em uma determinada área produtiva. No entanto, os ecossistemas de inovação vão além, integrando atores diversos e permitindo interações mais complexas, que incluem desde incentivos governamentais até cooperação transnacional, tornando-os um fator crucial para a competitividade em setores estratégicos como a saúde. No setor de saúde, esses clusters se tornam ainda mais essenciais, dado o alto custo e a complexidade da pesquisa biomédica.
Ecossistemas de Inovação: O Desafio dos Países Emergentes
O Brasil tem avançado na estruturação de um ecossistema de inovação em saúde por meio do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), uma iniciativa estratégica do governo federal. Com investimentos previstos de R$ 42 bilhões até 2026, o CEIS busca fortalecer a produção nacional de insumos estratégicos para o SUS, reduzindo a dependência externa e promovendo inovação. O plano envolve programas de incentivo à produção local, parcerias para o desenvolvimento de vacinas e medicamentos, modernização da infraestrutura e estímulo a startups e empresas do setor.
Essa abordagem fortalece a soberania científica e tecnológica ao articular atores-chave, como Fiocruz, Instituto Butantan, universidades, fundações de apoio e a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh). A Ebserh pode desempenhar um papel estratégico ao administrar hospitais universitários federais, que funcionam como centros de excelência na formação de profissionais, na produção de conhecimento científico e no desenvolvimento de novas tecnologias em saúde. Essa integração entre ensino, pesquisa e assistência permite que a inovação gerada em laboratórios acadêmicos seja rapidamente testada e aplicada no SUS, ampliando o impacto social da ciência e fortalecendo a autonomia tecnológica do país.
Além disso, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e outros órgãos atuam no mapeamento de desafios e oportunidades do setor, garantindo que a estratégia nacional esteja alinhada com as tendências globais. Dessa forma, o Brasil se posiciona de maneira mais competitiva na biotecnologia e na inovação médica, ao mesmo tempo em que assegura a sustentabilidade do SUS e fomenta um ecossistema de inovação robusto.
O Brasil tem uma infraestrutura robusta na área da saúde e ciência, com instituições de excelência como a Fiocruz, o Instituto Butantan e diversas universidades federais e estaduais de renome internacional. O poder de compra do SUS, aliado às fundações de apoio e aos parques tecnológicos espalhados pelo país, poderia ser articulado sob um guarda-chuva estratégico para fortalecer a soberania científica e tecnológica nacional.
O CEIS já representa um passo significativo na construção de um plano nacional integrado de inovação em saúde, promovendo sinergia entre essas entidades e garantindo financiamento contínuo para pesquisa e desenvolvimento. Ainda que não resolva todas as fragilidades do setor, essa estratégia aponta um caminho para fortalecer a autonomia tecnológica do Brasil. Isso incluiria incentivos para startups de biotecnologia, programas de transferência de tecnologia entre universidades e empresas, além de parcerias público-privadas voltadas para inovação. Dessa forma, o Brasil poderia reduzir sua dependência de insumos e tecnologias importadas, estimular a produção local e se consolidar como um ator relevante no cenário global de biotecnologia e inovação médica.
Para países em desenvolvimento, a participação nesses ecossistemas globais é crucial, mas também desafiadora. O Brasil, por exemplo, possui excelência acadêmica e uma base científica sólida em biotecnologia e saúde pública, mas ainda carece de políticas mais agressivas para se inserir nas redes globais de inovação.
A China, por outro lado, compreendeu a importância da construção de ecossistemas estratégicos. Em vez de apenas tentar produzir localmente, o país investiu pesadamente na formação de parcerias internacionais, aquisição de tecnologia e desenvolvimento de infraestrutura científica de classe mundial. Hoje, já desafia os EUA e a Europa na corrida pela liderança em biotecnologia e inteligência artificial aplicada à saúde.
Ecossistemas e Poder Nacional
A política externa de um país também se reflete em sua capacidade de articular esses ecossistemas. Barreiras comerciais, guerras tarifárias e políticas isolacionistas não apenas elevam custos para os consumidores, mas desmantelam cadeias de inovação. A tentativa da nova administração do Governo dos Estados Unidos de impor tarifas indiscriminadas a aliados e rivais é um exemplo de como políticas mal planejadas podem desorganizar ecossistemas produtivos inteiros, prejudicando a própria economia americana.
A lógica da inovação é oposta à do protecionismo: enquanto tarifas e restrições comerciais tentam segmentar mercados, os ecossistemas de inovação prosperam na conectividade e na livre circulação de talentos, investimentos e ideias. Países que compreendem essa dinâmica conseguem desenvolver setores estratégicos, fortalecer sua influência global e gerar crescimento econômico sustentado.
A construção de ecossistemas de inovação na saúde e em outros setores não é apenas uma questão econômica, mas uma escolha estratégica para qualquer nação que deseja se posicionar competitivamente no século XXI. A interdependência global é um fato incontornável e aqueles que tentarem ignorá-la correm o risco de isolar suas economias e comprometer seu próprio desenvolvimento.
O Papel das Agências Reguladoras nos Ecossistemas de Inovação
O papel das agências reguladoras, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), é crucial dentro do ecossistema de inovação em saúde.
A ANVISA desempenha um papel fundamental na regulação de medicamentos, dispositivos médicos e pesquisas clínicas, garantindo padrões de qualidade, segurança e eficácia. A ANS, por sua vez, regula o setor de planos de saúde, promovendo um equilíbrio entre consumidores e operadoras e incentivando a adoção de novas tecnologias no setor. Além disso, instituições como o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) influenciam diretamente a inovação ao estabelecer diretrizes para patentes e direitos de propriedade intelectual.
A coordenação eficiente entre essas entidades é essencial para criar um ambiente regulatório que favoreça o desenvolvimento científico e tecnológico, ao mesmo tempo em que protege os interesses públicos. No contexto do CEIS e da estratégia nacional de inovação em saúde, a harmonização regulatória é um fator determinante para acelerar o desenvolvimento de novas tecnologias, reduzir a burocracia e aumentar a competitividade do setor.
As agências reguladoras também desempenham um papel-chave na atração de investimentos e na internacionalização da indústria de saúde brasileira. A previsibilidade regulatória e a conformidade com padrões internacionais tornam o país mais atraente para empresas e pesquisadores, ampliando a capacidade do Brasil de integrar-se aos ecossistemas globais de inovação.
Assim, garantir um ambiente regulatório ágil, moderno e alinhado com as melhores práticas globais é fundamental para fortalecer a soberania tecnológica e a competitividade nacional.
O avanço dos ecossistemas de inovação, especialmente no setor da saúde, depende da interação eficiente entre a indústria, instituições de pesquisa, políticas governamentais e estruturas regulatórias. O papel de agências como a ANVISA, a ANS e o INPI não é apenas fiscalizador, mas também facilitador — promovendo um equilíbrio entre padrões rigorosos e a criação de um ambiente dinâmico para o progresso científico e tecnológico.
A inovação não acontece no vácuo. Ela prospera em ecossistemas bem estruturados, onde atores públicos e privados colaboram para agilizar processos, atrair investimentos e acelerar a adoção de soluções avançadas. Países que alinham com sucesso suas políticas de inovação às tendências globais, ao mesmo tempo em que mantêm autonomia estratégica, não apenas impulsionam o desenvolvimento econômico, mas também aumentam sua influência global em setores críticos, como saúde e biotecnologia.
Para os formuladores de políticas públicas, compreender essa realidade e atuar ativamente na construção desses ecossistemas é essencial para garantir não apenas o crescimento econômico, mas também a soberania e a competitividade nacional.

por Marcio de Paula
Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde - IBIS
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